quinta-feira, 11 de agosto de 2022

Economia e crime

 O livro de Vincenzo Ruggiero sobre "The Crimes of the Economy: A Criminological Analysis of Economic Thought" propõe-se a fazer uma leitura criminológica do pensamento econômico, uma empreitada que aproxima a criminologia não só da economia, como também da sociologia do conhecimento.

Ao analisar cada corrente histórica da economia, ele atenta para o contexto e suas possíveis repercussões criminogênicas: vitimização que é produzida pela aplicação destas ideias, a possível legitimação para condutas socialmente danosas. A análise, apesar dos propósitos sucintos, acaba se expandindo para análises das relações entre atividades econômicas, especialmente no mercado, sistemas jurídicos e penais e diversas formas de "violência" entendidas no sentido amplo de quaisquer ações que produzam vitimização, o que muitas vezes abarca práticas que não eram ilegais em dado contexto: escravidão, guerras ou simplesmente atirar milhões à miséria.

De certa maneira, a análise dos "crimes da economia" é uma interessante inversão da chamada "economia do crime", que se propõe a usar fundamentos analíticos do pensamento econômico, sobretudo a microeconomia ortodoxa, para explicar as variações na incidência criminal, com base, principalmente, no conceito de dissuasão penal.

O livro, por outro lado, expõe-se facilmente à acusação de anacronismo, tendo em vista que liga os conceitos econômicos a condutas que hoje são criminosas, mas não eram assim consideradas. O mais marcante é a leitura do mercantilismo, cujos argumentos foram utilizados para justificar guerras de conquista e criação de sistemas de tráfico e exploração de seres humanos escravizados, em prol do lucro e da acumulação de metais preciosos. Só que nada disso era considerado crime na época: a escravidão era um sistema regulado e protegido por leis, que asseguravam-na como um meio legítimo de enriquecimento pessoal para os traficantes de escravos e seus clientes, ao tratar um ser humano como passível de ser propriedade privada de outro. Sem dúvida é um sistema com vítimas, os escravizados, e agressores, os escravizadores. "Crime", por isso, às vezes é utilizado, em sentido amplo, como uma conduta socialmente danosa, isto é, produtora de vitimização, especialmente quando se trata de uma grave vitimização (certamente o caso da escravidão ou da guerra). Por outro lado, este capítulo conecta a criminologia e a economia a temas habitualmente esquecidos nestas disciplinas, como o colonialismo, o que é muito interessante.

À medida em que adentra em períodos mais modernos, a vulnerabilidade da argumentação de Ruggiero à acusação de anacronismo diminui, pois os assuntos se tornam mais familiares. Na verdade, alguns deles estão claramente presentes nos debates do dia, como o "socialismo dos ricos" praticado como um keyneseanismo reverso, quando os governantes usam fundos públicos para auxiliar grandes empresas, enquanto abandonam milhares de desempregados e destituídos em meio a crises; o encorajamento aos danos sócioecológicos de larga escala pela defesa neoliberal do crescimento econômico ilimitado sobre um mundo natural limitado; a legitimação dos crimes de colarinho branco pela economia marginalista, ao retratar como heróis injustiçados os investidores e gestores capitalista que burlam a lei e causam danos sociais (superexploração de pessoas socialmente vulneráveis, insalubridade e insegurança nas condições de trabalho, sonegação e fraudes financeiras etc) para aumentar os próprios lucros; a aplicação das ideias de Malthus para controlar a superpopulação deixando que grandes contingentes da população pereçam por causas evitáveis; e assim por diante.

A ideia por trás dessa leitura criminológica do pensamento econômico é familiar a quem pesquisa o assunto: trata-se do conceito de que a criminalidade é aprendida mediante a interação em um dado contexto social, na qual há uma transmissão cultural das práticas criminosas e danosas, gerando subculturas delitivas que muitas vezes consideram o sucesso individual como a meta legítima, mas são indiferentes à moralidade dos meios para alcançá-lo, o que contribui para que criminosos desenvolvam técnicas de neutralização, que justificam a sua conduta com argumentos que reduzem a sua culpa ou até a invertem. Nas bocas e penas dos poderosos, o pensamento econômico muitas vezes presta o serviço de justificar condutas socialmente danosas, alimentando as subculturas

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021

Desigualdade versus Pobreza?

 Um dia desses vi alguém defendendo que o problema político real não é a desigualdade social, mas tão somente a pobreza. Se os menos afortunados estão vivendo melhor, qual é o problema de existirem alguns excessivamente ricos? A princípio, alguém poderia achar que é razoável a afirmação. De fato, a filosofia liberal-democrática contemporânea (John Rawls) vai dizer que um nível maior de desigualdade é justificável se daí resultar que a base da pirâmide social, o estrato mais baixo, viver melhor. Como a desigualdade vai beneficiar os pobres, ainda é algo que não alcanço ainda. Talvez seja o raciocínio misterioso de que a hierarquia social sirva para incentivar os debaixo a trabalhar mais, na esperança de ascensão social, contanto que haja alguma mobilidade razoável, é claro. O problema é que esse tipo de raciocínio tem um monte de premissas não explicitadas, que induzem o ouvinte (e o falante) ao erro.

Em primeiro lugar, a ideia de que a pobreza, ou, no sentido mais amplo, a privação absoluta e relativa se reduzem ao ganho monetário. Em bom português: falta de dinheiro para comprar o básico. Sei que essa discussão talvez seja fora de propósito numa conjuntura como a atual, onde a pobreza no sentido estrito, ou seja, de uma renda monetária insuficiente, está de fato crescendo, graças às políticas econômico-sociais em vigor atualmente. Acontece que, além do crescimento da pobreza no sentido estrito (privação absoluta de renda), é provável que segundo parâmetros multidimensionais e relativos de privação também o esteja. Em sociedades mais complexas as necessidades individuais e coletivas também tendem a ser mais complexas. Se nas sociedades tradicionais e comunitárias a terra é o bem material mais valorizado, porque dá acesso à subsistência, em uma sociedade moderna - sobretudo no período da globalização, tecnologia 4.0, etc - a reprodução social não é assim tão simples. Mesmo acreditando que patamares arbitrários de pobreza, como o estabelecido pelo Banco Mundial ou pelo IBGE, são satisfatórios para medir a pobreza em todo o mundo ou num país continental como o Brasil, é difícil discordar, sem ferir o senso de realidade, que acesso a habitação, saneamento, educação, saúde, justiça formal, cultura, mobilidade e segurança pessoal não sejam importantes.

E, segundo lugar, é realmente muito esquisito ignorar o enorme custo coletivo que a desigualdade social impõe. Falamos, é claro, de alguns fatos que podem ser atribuídos às disparidades. Cito aqui alguns achados das pesquisas empíricas (uma busca no scielo, google acadêmico ou open journals exibirá inúmeras): sabe-se que o desempenho educacional tem estreita relação com a origem socioeconômica, e que as oportunidades de trabalho estão ligadas à educação. Logo, a posição socioeconômica dos pais é o preditor mais poderoso da posição socioeconômica das gerações posteriores. E isso levando em conta apenas a educação, porque se sabe que entre os top-1% da riqueza a herança patrimonial pura e simples têm um papel enorme. Alguém vai me dizer que o fato de uma ínfima minoria ter riqueza garantida por apenas ter nascido na família "certa", é meritório ou justificável? Além de injusto para os que nascem por baixo, e da moleza pra os que nascem por cima, há um problema adicional: o desperdício de talentos e a promoção de nulidades e mediocridades. A falta de oportunidades para a maioria faz com que vários talentos que poderiam ser desenvolvidos acabem desperdiçados, enquanto pessoas privilegiadas abocanham os melhores postos sem muito esforço. Querem um grande exemplo? A política brasileira. Já reparou quantos políticos são filhos, irmãos, netos, sobrinhos de outros políticos? E já parou para observar a nulidade que são esses meninos bem-nascidos? Já viu a enorme dificuldade de promover mudanças positivas, e a facilidade para destruir esforços construtivos de gerações? O baixo nível da política brasileira dispensa comentários, sobretudo no período atual.

Além da herança, há outro problema na questão da mobilidade: a discriminação. Quer dizer, alguns tem acesso a oportunidades melhores porque são vistos a princípio como melhores pelos outros, e por isso são melhor tratados, uma diferenciação que vai formando grupos com melhores esperanças de ascensão e vida que outros. Pais, professores, policiais, empregadores, chefes e eleitores, entre outros, diferenciam o tratamento segundo os seus preconceitos, o que pode trazer benefícios para alguns e sofrimento para outros. "Raça" e "gênero", ou  melhor, estereótipos raciais e sexuais, são um exemplo bastante evidente, mas alguém poderia citar ainda preconceitos regionais, nacionais e religiosos para lembrar fatores de desnivelamento social que estão bem longe de corresponder ao mérito pessoal. Em muitos casos, discriminação e herança podem se reforçar mutuamente, criando nichos seriamente prejudicados pela desigualdade social - os negros pobres no Brasil e Estados Unidos são um ótimo exemplo.

Não é muito difícil identificar em numerosas publicações o quanto a desigualdade social contribui para a violência criminal, o baixo crescimento econômico, a instabilidade política, a devastação ambiental, a corrupção, a prevalência de doenças mentais e drogadição, e, obviamente, a pobreza. Afinal, uma grande concentração de riqueza no topo pode ser obtida com estratégias agressivas de apropriação de renda por parte de elites políticas e proprietárias, drenando riqueza e renda de baixo para cima. Pense, por exemplo, na política fiscal brasileira: como o Estado arrecada, via impostos regressivos e indiretos, que oneram o consumo das classes baixas e média-baixa, e como gasta para custear enormes privilégios que beneficiam os filhos da própria elite (supersalários de uma minoria de servidores, desonerações e subsídios para grandes empresas), ao mesmo tempo em que sempre "falta" dinheiro para gastos que beneficiam a todos, como educação, saúde e previdência públicas. Alguns argumentam, ainda, que muito da concentração de riqueza se deve à drenagem de bens comuns não monetários, como o patrimônio natural. Até mesmo o conhecimento, cada vez mais um dos principais fatores produtivos, tem uma dimensão coletiva que torna problemáticas certas formas de propriedade intelectual. Não é difícil imaginar que estratégias rentistas desse tipo podem enfraquecer a própria produção de riqueza geral, levando à estagnação ou até regressão. 

Também a coesão social, moral e cultural pode sair prejudicada. Os mesmos que concentram riqueza vão buscar se distinguir, se apresentar como superiores, merecedores da sua bem aventurança, e se apartar dos outros. A classe média, também execrada pelos poderosos, tenta imitá-los, se apresentar como merecedores do seu pequeno status e estilo de vida, e se apartar dos demais. E assim por diante, de cima para baixo, com os pobres execrando os miseráveis, e assim por diante. O colapso da coesão social e da civilidade são consequências, por mais que alguns tenham muito dinheiro para se proteger atrás de carros blindados, condomínios murados e seguranças armados. Soa familiar?

Isso nos dá a deixa para entrar no terceiro ponto: há algo de intrinsecamente incômodo na desigualdade social, algo detestável. Como já comentei sobre a herança familiar e a discriminação social (racial, sexual, religiosa, regional, etc), a grande justificativa é negar que tais coisas existam, quando estão bem debaixo do nariz de todos, e que a posição social do indivíduo corresponde às suas características individuais - talento, esforço, perseverança, mérito, e outras palavras bonitas. Estas coisas podem ter algum papel, junto com o acaso e a sorte, já que todos conhecem alguma exceção ao destino de ficar na mesma posição relativa que os pais. Inversamente, até certo ponto características individuais também resultam do contexto de desenvolvimento individual. Pensemos na relação entre alimentação e altura ou inteligência, por exemplo: crianças bem alimentadas costumam virar adultos mais altos e inteligentes. Enfim, o fato dos seres humanos terem todos algo em comum, a sua humanidade, torna pouco plausível que desigualdades extremas tenham qualquer justificativa positiva, e muito provável que tenham consequências perversas.